Antonio Leite |
Todos temos sonhos não é mesmo ? Transformá-los em realidade, não raro, implica eleger prioridades e enfrentar medos. Por isso, ou por aquilo, muitas vezes acabamos os deixando dormir em alguma gaveta de nossos espíritos, enquanto o tempo vai fazendo seu trabalho.
A sorte é que "sonhos não envelhecem", com comprometimento, disciplina e uma boa dose de vontade de ser feliz, sempre é possível sacudirmos de cima deles a poeira dos anos de engavetamento, e começar assim, os primeiros passos rumo à realização.
Talvez esse dia seja exatamente hoje...
* * *
MARÇO/2019 – O COMEÇO DE TUDO
- Roberto, desde que passei a pedalar que tenho vontade de viajar de bicicleta de Salvador a Aracaju, e você é a pessoa mais indicada para me ajudar nesse sonho!
Estávamos treinando descanso na véspera da Maratona das Praias, quando "seu" Antônio (carinhosamente apelidado de Novinho), externou pela primeira vez seu desejo cicloturístico.
Antes mesmo que eu respondesse alguma coisa, emendou:
- Meu aniversário será em junho, e queria muito poder realizar essa viagem como comemoração aos meus 70 anos!
Aquela frase soou para mim como um "Se vire",
Praticando um cicloturismo solitário desde os 15 anos de idade, somente a partir de 1995 passei a "levar gente" na maioria das minhas excursões de bicicletas. E foram (e são) tantos parceiros de viagens, desde aqueles que eram capazes de se apresentar num globo da morte, a outros que mal se equilibravam em duas rodas. Adultos, homens, mulheres, adolescentes, entretanto, um rapazinho setentão seria uma nova experiência, um novo desafio, e como todos os outros, uma grande responsabilidade.
Não sem experimentar um certo frio na barriga, disse-lhe:
- Vamos nos preparar para fazer essa festa!
Como não podia deixar de ser, ali mesmo começamos a traçar as estratégias para a viagem.
A primeira coisa que ficou evidenciada, é que o "Novinho" erroneamente achava que seria algo do tipo, "marcamos a data, e no dia vamos".
- Não senhor! Precisamos traçar uma "planilha" de treinos, aprender a trocar pneus, passar marcha, ser o mais auto suficiente na estrada, etc, etc.
Não era a primeira vez que iríamos pedalar. Em duas ocasiões já o havia "levado" para passeios fora da cidade (Santo Amaro e Imbassaí), portanto sabia bem em que ponto estávamos, e em que precisávamos melhorar para atingir o objetivo.
É interessante ressaltar que por conta de seu invejável preparo físico (construído nos quase 40 anos de atletismo), e do nível de pilotagem em que se encontrava, para Antonio, os 300 km de pedal até Aracaju era mais apropriado até que outro destino de distância menor, mas que por exemplo, exigisse passagens em rodovias mais movimentadas e/ou sem acostamento.
Naquele percurso o grande desafio são as ladeiras intermináveis (com inicio em Itacimirim e só fazem piorar nos 140 km até a divisa BA/SE), mas em contrapartida não há uma grande tensão com trânsito.
Ali mesmo, enquanto, jogados pelos sofás da casa, discutíamos detalhes da preparação, o sonho de seu Antônio ganhou o primeiro adepto: Manoel.
Com Pataro, Antônio e Manoel , prestes a sair para a Maratona das Praias |
E foi assim que surgiu Joelson que, como Manoel, não tinha nenhuma experiência de estrada, e também fora contagiado pela brincadeira do "Novinho". Coisa boa essa multiplicação do sonho não é?
Com a turma num dos pedais testes antes da viagem (Guarajuba-Massarandupio-Guarajuba). |
Este último ponto é sempre fundamental numa viagem, sobretudo com um grupo tão heterogêneo, pois independente de como estava acontecendo o avanço (técnica, força) de cada um, nunca poderíamos perder de vista que "lá" deveríamos ter paciência, respeito, amor com todos. Afinal de conta estávamos no mesmo barco, e já fazia tempo que aquele sonho deixara de ser apenas do "Novinho".
Manoel , num bate e volta, indo a sua cidade (Mata de São João) pela primeira vez de bike |
NOVEMBRO/2019 – A VIAGEM
À exceção do primeiro dia que, estrategicamente, por força da geografia, foi traçado até Porto de Sauípe, nosso pedal foi deixado em aberto.
Muito mais que acumular quilômetros (isso pode fazer qualquer atleta), o que buscava mostrar aos futuros ciclistas interestaduais, era que com um bom deslocamento, uma maior concentração no momento da pedalada propriamente dita, poderíamos ter mais tempo de qualidade nos pontos de chegada, e com isso poder viver a essência de uma verdadeira viagem cicloturística.
A ideia era evitar que nos arrastássemos debaixo de sol forte. Lá atrás havia estimado a possibilidade de completar entre 03 e 04 dias, mas no dia D, já tinha uma quase certeza que poderíamos dar conta em 03 "tacadas".
Curtindo a tarde na maravilhosa pousada do Romano em Porto de Sauípe |
Posso adiantar que no segundo dia ( o que já se sabia mais decisivo entre todos), entre o mínimo e o máximo possível das projeções, o time só não atingiu o cume por opção, uma vez que em Mangue Seco a hospedagem iria onerar demais a viagem, contrastando absurdamente com nosso pouso na cidade sergipana de Indiaroba, onde nos alojamos na pousada Pereira por R$ 40,00, com direito a jantar macaxeira, batata, ovos e cuscuz.
A viagem foi sucesso completo (pedalamos três manhãs, em duas delas chegando ao destino por volta das 9h), alegria geral, e todo o grupo está de parabéns, mas não há como não ressaltar a força, a garra, e alegria desse mocinho septuagenário que com seu sonho, proporcionou esse inesquecível encontro.
Seja para jogar conversa fora enquanto pedalávamos, seja para fazer essa ou aquela observação, vocês nem podem imaginar quantas vezes fiquei emocionado por estar seguindo ali perto do "Novinho", e por fazer parte daquela expedição.
Exemplo para todos nós, ter o privilégio de estar ali a pedalar com seu Antônio, fazia me sentir como se estivesse num palco qualquer fazendo um dueto com Caetano Veloso, não nego, a sensação era realmente de fã e ídolo.
08/11 – DIA 1
DE SALVADOR A PORTO DE SAUÍPE – 90KM
Por volta das 04 e 30 da manhã, em nosso já tradicional ponto de largada (O avião no Aeroporto), a turma toda já estava reunida e pronta para dar início à brincadeira,
Faltava ainda Gil, que iria nos fazer companhia até Sauípe, e também num trecho do segundo dia. Uma ligação e veio a confirmação, o amigo acabara de acordar assustado. "Vão embora que eu alcanço vocês".
Em tom de brincadeira, passei a informação para o grupo, "agora é questão de honra, apesar de gostar muuuuito da companhia de Gil, não vamos deixar que nos alcance antes de chegarmos em Sauípe".
Fomos...
Pouco tempo depois, recebi uma ligação de outro amigo, Joel, que estava vindo na paralela com uma turma da pesada para nos acompanhar por alguns quilômetros na Estrada do Coco. "Já já a gente alcança vocês". Parecia que todo mundo resolveu nos dar uma vantagem, rs.
despedidndo da galera em Arembepe |
A turma foi até Arembepe, dando bastante tempo para darmos boas risadas e de alguma forma aliviar as tensões.
Com pouco menos de duas horas pedaladas fizemos uma rápida parada para "café, xixi, chiclete" em Guarajuba.
Dali em diante, o treino-teste que havíamos feito entre Guarajuba-Massarandupió ajudou muito na cabeça do grupo. Todos já sabíamos o que havia pela frente.
Felizes e numa mesma pegada, por volta das 9h 15, chegamos em Porto de Sauípe. Não deu para Gil, rs.
O amigo somente viria a se juntar a gente, após sairmos do mercado onde fizemos nossas compras antes de seguirmos para a Pousada do Romano.
Situado à beira do mar, envolto num delicioso clima de paz, nosso cantinho para recarregar as energias não poderia ter sido melhor, e digo sem a menor dúvida, teve papel fundamental no prosseguimento e sucesso da viagem.
Com Aline |
Tendo uma cozinha à disposição (e alguns mestres-cucas entre os viajantes) não precisávamos sair dali para nada até nossa largada no dia seguinte às 04 da manhã.
E como já havia dito certa vez André Pipa... "foi ali que passamos a tarde no mais completo "dolce fare niente", aqui e ali interrompidos por mergulhos no mar e uma siesta na rede, "sacrifício" dos grande, como calculam.
09/11 – DIA 2
DE PORTO DE SAUÍPE A INDIAROBA – 120KM
Pontualmente as 04 da manhã, totalmente reenergizados deixávamos a portaria do Condomínio Águas de Sauípe.
Nesse momento éramos 05. Gil que iria voltar para o paraíso para nele ficar até o dia seguinte nos acompanharia até a ponte no entroncamento de Baixios.
Rapidamente entramos no ritmo, e logo já não precisávamos mais dos nossos faróis.
Sair cedo, e aproveitar ao máximo o frescor da manhã é uma outra coisa fundamental no cicloturismo. O esforço sempre será recompensado com menos exposição ao sol (e consequentemente menor desgaste) e com maior tempo para curtir o próximo destino.
Antonio, Manoel, Joel e Gil registrando a passagem no KM 100 (Subaúma) |
Estávamos no trecho mais difícil da Linha Verde, e em meio ao sobe e desce, avançavamos de forma consistente. Íamos sem destino fixo como já disse, e de forma animada, em minha cabeça os planos saltitavam.
Com 43 km pedaladas ficamos sem a luxuosa companhia do amigo Gil, Agradecendo a gentileza e desejando bom retorno, seguimos em frente.
Sabendo que a filha de Joelson (que iria se hospedar com seu namorado na linha verde), estava prestes a passar por nós, cancelamos uma descida na entrada de Baixios para reposição de água/alimentos.
Uns 10 km à frente chegou a cavalaria... Bom demais! Água, geladinho gourmet e outras mumunhas mais.
Sempre fazendo o papel de guia turístico chato, pedi ao pessoal para que não demorássemos muito na parada, no que foi atendido, pois sequer deixamos as bikes de lado para fazer a reposição.
Vitor e Camila e trazendo entre outras coisas um delicioso geladinho gourmet |
Em tom de brincadeira, mas sabendo que era uma real possibilidade, lancei o convite:
"- Se quiser almoçar com seu pai, estaremos na divisa meio dia, no Pitu da Eliane".
Seguimos em nosso caminho e havia passado pouco mais das 09 h quando alcançamos a entrada do Conde. Novamente peguei no pé do pessoal. Nada de demorar nessas fotos pois, vamos parar 5 km à frente para "botar combustível".
Chegamos na parada para reabastecimento, exatamente no mesmo horário em que havíamos completado o pedal do dia anterior. Estimara chegar ali para almoço, e se sentisse o grupo ainda com forças para seguir adiante, voltar a pedalar a partir das 15h30 para chegar em Indiaroba.
- Pessoal, vamos seguir em frente.
- Será um período sob o sol, mas valerá muito à pena chegar logo em nosso próximo ponto sem necessidade de fazer dois turnos. Não será tão fácil, afinal de contas apesar de termos vencidos todas essas ladeiras enormes até aqui, as três piores ainda estão por vir (não sei se deveria ter dito isso no meu discurso de motivação, rs), entretanto, quantas vezes até por sair de casa mais tarde do que deviam, vocês já voltaram para casa enfrentando sol de perto do meio dia?
Fomos...
E com paciência exatamente ao meio-dia estávamos prontos para comer um delicioso aratu no restaurante da divisa.
Ainda deu tempo de aproveitar essa parada e Joelson demonstrar todo seu conhecimento adquirido em troca e força de pneu, na bicicleta de seu Antônio que precisou de duas paradas para encher nos 12 km finais.
Após o almoço tão desejado, vencemos os 07 km que restavam ate a cidade de Indiaroba.
Muito feliz com a performance do grupo entramos na Pousada Pereira, numa excelente hora para fazer a siesta.
Renovados, a tarde todos fomos passear na cidade e curtir a paz e a beleza do rio Piauí.
No outro dia, sob a permissão de Deus, estaríamos em Aracaju.
10/11 – DIA 3
Em que pese saber que o trecho mais difícil da viagem já havia sido vencido, não podíamos nos acomodar e cair na armadilha de que já "estávamos lá", por isso o horário de partida foi marcado para 4h 15 da manhã.
Dormira muitas horas seguidas (coisa que não conseguia fazer há algum tempo) e me sentia bem descansado para esse último trecho.
Na programação, uma parada para "completar o tanque" numa padaria em Caueiras, o que representaria 53km de pedal (e coincidia com o 6º dia do Desafio Salvador a Aracaju Correndo no ano de 2011), de onde faríamos contato também com Adilson (Didi), primo de Joelson que expressara o desejo de pedalar até a Ponte Joel da Silveira, para nos recepcionar em nossa chegada a capital sergipana.
Dali restavam apenas 37 km para nosso ponto de chegada nos Arcos da Orla de Atalaia, famoso cartão postal da cidade.
Didi se juntando ao grupo |
Deixamos Mosqueiro ainda sem pegar a orla. Podia imaginar o que estava se passando no interior de cada um dos integrantes daquela maravilhosa expedição que estava chegando ao fim.
Seu Antônio dera o primeiro passo. Os meninos vieram na esteira desse sonho, e longe de ser meros coadjuvantes, contribuíram com muita camaradagem, solidariedade e carinho para o sucesso da viagem, que também representava um desafio para eles. No meio disso tudo, feliz pelas horas que passamos, pelos meses de preparação, pela semente que regamos, e sempre agradecendo a Deus, o menino que vive dentro de mim, sorridente, emendava mil cambalhotas.
De repente estávamos na orla. A emoção era indisfarçável, estava nos sorrisos, nos olhos, nas vozes estridentes. O relógio marcava 9h da manhã no momento em que "apeamos" nossas valorosas "magrelas". O sonho de seu Antônio, tornara-se, enfim, realidade.
Parabéns!!! |
Valeu, turma! |