De volta ao Parque |
De repente amanheceu e novamente estávamos (tia Lalá, eu, Pataro e Gil) na entrada do Parque do Taquaral.
A visão de nossas barracas no mesmo lugar em que as deixamos, ao mesmo tempo em que punha fim ao receio que alguém, durante a ausência noturna, houvesse vetado o local escolhido, lembrava-nos que aquela seria nossa residência pelo menos até o domingo meio-dia.
Com Robertinho, Tomiko e Áureo Lavinas |
- Ainda dá tempo de desistir! Falei, em tom de brincadeira, mas ninguém me deu ouvidos. Já tava todo mundo na concentração.
A hora estava chegando e o frio na barriga só fazia aumentar, quando os acordes do Hino Nacional começaram a espalhar-se pelo Parque. Embora estranhando a antecipação, agradeci aos céus e, mão no coração, fui juntar-me ao resto da tropa.
As lágrimas ainda escorriam em meu rosto quando soou a buzina de largada e, desejando sorte a todos, comecei a colocar em prática um certo plano ousado.
No Jantar de Massas da noite anterior havia conhecido o simpaticíssimo Ivan do Espírito Santo, ganhador da 1ª Edição das 24h de Campinas, e apesar da conversa rápida que tivemos, sua tranquilidade me impressionou tanto que na ida para o Hotel fiz o seguinte comentário: “Aquele cara tá com jeito de campeão, vou me arriscar, mas é ele quem vou tentar seguir na prova”.
Agora a prova já estava rolando e, cumprindo o prometido, tendo, para minha enorme satisfação, o amigo Gil ao meu lado, ia seguindo bem de perto Ivan, que ia ladeado pelo excelente Delino Tomé.
Delino, Ivan, eu e Gil |
Logo na segunda volta anunciei a Ivan que tencionávamos (Gil e eu) “pegar carona” pelo maior tempo possível.
- É um prazer! (típica resposta de Campeão)
Na oitava volta, quando passávamos pelo técnico de Ivan ele “nos” anunciou que o líder estava a 300 metros . No ritmo forte que vínhamos correndo (com todas as voltas ficando na casa dos 13’/14’) imaginei que logo iríamos alcançar o Mauro Rosa, mas para minha surpresa, quando “abri o olho” o Campeão da edição do ano passado já estava dando um capote na gente.
Confesso que fiquei meio preocupado quando vi o cara indo embora, mas a tranquilidade com que Ivan recebeu aquela ultrapassagem, nenhum músculo denunciando o golpe, trouxe-me a certeza de que a estratégia deveria ser mantida.
Mantendo a mesma pegada, aos poucos uma conversa monossilábica começou a rolar e frequentemente Ivan ia nos dando dicas, inclusive quanto ao melhor traçado na pista. Algumas vezes parecíamos (Gil e eu) “os sombras”, pois cada movimento de relaxamento à frente, instintivamente era reproduzido por nós atrás.
Continuando a brincadeira de “siga o Mestre”, na hora que começaram a servir purê e macarrão passamos a mão nos copinhos e, sem diminuir quase nada do ritmo, fizemos nosso almoço em pleno movimento.
Acusando dores, Delino foi o primeiro a deixar o bonde. Com três horas um dos staffs de Ivan ordenou-lhe que parasse na próxima volta, no que foi acompanhado por Gil e, sozinho, segui adiante na mesma toada.
Com 04h30 de prova e quase 50km rodados fiz uma parada para trocar o tênis baixo, que não estava dando conta do terreno pedregoso e, aproveitando o tempo que a empolgada “ultrastaff” tia Lalá iria gastar para trocar o chip, pedi ao Fisioterapeuta uma massagem que soltasse meu pescoço. Santa Massagem!
Faltava pouco para as 03 horas da tarde quando voltei à pista.
Com as pernas enrijecidas, a primeira volta foi pra lá de lenta. Sabia que precisava ter paciência até que elas destravassem, entretanto mesmo naquele ritmo a coisa estava sendo muito sofrida.
Algumas voltas se desenrolavam e nada das dores e travamento me abandonarem.
Aliás, a coisa ficou tão feia que comecei a imaginar a possibilidade de não resistir. Foi preciso usar muitos argumentos para me convencer que tinha que permanecer ali: o tempo gasto em treino; a expectativa dos amigos; a contagiante euforia da tia Lalá, que o tempo todo fazia questão de me informar minha situação em relação aos adversários; o sorriso dos meus filhos.
Houve um momento que aos gritos implorei-lhe que não me avisasse mais nada, que eu não iria mais marcar ninguém, que ia só fazer a minha prova, etc., etc. (o desespero tava brabo rs).
Depois da tempestade, a bonança...
Pataro |
Não sei ao certo em que momento a coisa voltou a fluir, só me lembro de, já num astral completamente diferente, ter passado pelo amigo Pataro gritando que ele não ia acreditar, mas havia voltado a completar as voltas na casa de 15 minutos.
Ainda mais que antes, chegava ao pórtico ávido pelas informações da tia Lalá e, ressabiado pelas dificuldades enfrentadas após a parada, decidi que aproveitaria o bom momento, adiando o máximo que pudesse o novo pit stop.
Área do Pórtico com toda estrutura necessária ao atleta |
O que eu não poderia sequer imaginar era quão longa seria essa “perna” da corrida.
Inicialmente projetei a parada para as 19 horas (9h de corrida). E foi mais ou menos por esta hora que começou uma chuva que nos acompanharia durante toda a noite.
Classificação das 20:00 |
Outro que gostou da chuva foi Delino. Novamente nos encontramos e fizemos algumas voltas juntos, porém, como sua perna continuava dando sinais de que não aguentaria o tranco (o cara acabara de vir de uma prova de 48h) ele disse que iria parar para procurar um anti-inflamatório, na passagem peguei um com a tia Lalá entregando-o para que ele não perdesse muito tempo.
A pista começou a enlamear e em alguns lugares os tênis ficavam completamente submersos. Mais cedo eu havia detectado uma bolha enorme na sola do pé e esta água poderia ser um complicador, mas continuei firme na decisão de não trocar as meias.
O Márcio Villar, que tinha ido lá só para treinar (ufa... rs), várias vezes demonstrou sua preocupação quanto ao fato de eu estar usando apenas short e camiseta (a maioria das pessoas usavam capas neste momento), temendo que eu tivesse hipotermia.
Agradecia sempre o carinho da preocupação, mas hora alguma senti desconforto em relação à temperatura e nem me passou pela cabeça a ideia de parar para colocar algo mais aquecido.
Às 22 horas começaria uma corrida de 11km (4 voltas). A ideia dos Organizadores da Ultrarunner era muito boa. Ao mesmo tempo em que dava aos acompanhantes oportunidade de uma corrida de menor porte, a presença de “sangue novo” na pista poderia injetar novo ânimo nos ultramaratonistas que estariam correndo há doze horas.
A chuva cada vez mais forte ameaçava a realização desta prova. E a tia Lalá, que estava inscrita, dizia-se arrependida por conta do frio. Imaginando que poderia (se aguentasse o ritmo da titia) dar as 04 voltas a seu lado, programei uma parada de pouco minutos antes das 22:00 para largarmos juntos.
Às 21:50 cruzava mais uma vez o pórtico e enquanto ia passando busquei sem sucesso encontrar a melhor staff da prova trajada de corredora. Na dúvida segui adiante.
Quem acabei vendo naquela volta foi o técnico Branca. Já havia perguntado por ele durante o dia e encontrá-lo por ali foi uma enorme e maravilhosa surpresa. Com a calma e atenção de sempre, disse-me que também estava feliz por me ver ali.
Durante a madrugada, num momento em que ele cruzava o pórtico caminhando ao lado de um dos seus atletas, ao ver que eu continuava marcando e conferindo o tempo de cada volta, mais uma vez fui presenteado com um carinho:
“ – Você está bem. É isso aí, mantenha o foco e esvazie a mente”.
Gente, vocês não imaginam a força que pode ter uma frase desta num momento tão crucial como aquele.
Na outra volta, soube que a corrida de 11km estava rolando e deduzi que além de não poder prestigiar a corrida da “titia”, ficaria “órfão” por pelo menos 4 voltas.
Já passava da meia-noite quando nos reencontramos. A última vez que a incansável tia Lalá havia corrido foi em abril. Mesmo assim, quando perguntei se ela havia feito boa corrida, se gastara mais de uma hora e meia, toda prosa foi logo me dizendo: “Gastei 1 hora e 15 e na última volta fiz split negativo”.
Às duas horas da manhã quando saiu nova atualização de classificação eu já aparecia entre os cinco primeiros. Era hora de parar de me engabelar. Lembrando do conselho que recebera do amigo Genivaldo na corrida do ano passado, decidi que só pararia caso não conseguisse me arrastar.
Durante a madrugada, o campeão Ivan, com ajuda dos seus pacers, mantinha um ritmo impressionante. Tentei pegar carona algumas vezes, (até para fugir da perseguição do terceiro lugar), mas aquilo já estava além das minhas forças.
Um pouco mais tarde conheci o Moisés, que viria a ser o 4º colocado geral (é engraçado como você pode estar no mesmo lugar o dia todo e não encontrar e/ou perceber o outro) e, apesar de todo cansaço, nosso ritmo estava tão parecido que deu para seguirmos numa (apesar de econômica) descontraída conversa.
Quando o dia começou a amanhecer e a vitória já se mostrava quase impossível, resolvi que caso mantivesse a distância de 04 voltas para o terceiro lugar, iria me dar de presente uma parada antecipada.
Um pouco antes das nove horas da manhã, sem a menor chance de mudar de colocação, pus fim aquela corrida que já durava 18 horas ininterruptas e, abraçado à tia Lalá (para garantir e comemorar) fizemos juntos uma última (e única) volta andando.
Antes que desarmassem o circo, entreguei-me aos cuidados do pessoal do SAMU e deles enfim recebi o veredicto a respeito do que estava acontecendo com meus pés:
“– Estão cozidos. Calor o dia todo no tênis e água. Literalmente você cozinhou seus pés e agora só lhe resta deixá-los ao ar livre, nem sandália você deve calçar para que retorne a circulação.”
Fiquei por ali vendo a movimentação de quem ainda buscava fazer voltas nos últimos minutos e, para alegria geral, tanto Pataro quanto Gil encerraram suas corridas como vice-campeões de suas categorias. Sandrinha Grisi, a outra baiana presente na festa, também comemorava muito o terceiro lugar da sua faixa etária.
Baianos e seus troféus maravilhosos |
Entre “ais”, “ois” e “uis” (rs), parabenizamo-nos reciprocamente pela corrida que fizemos. Ivan merecia a vitória e eu estava indisfarçavelmente feliz por sair Vice-Campeão de uma prova tão disputada.
Devo muito a todos que me ajudam neste caminho. Durante a prova muitas destas pessoas me vinham à mente: os ensinamentos e as palavras de confiança de Marcelo Augusti; os gritos de Carlinhos (“mexe os braços, Rô”); os conselhos da amiga e Fisioterapeuta Joana (“contrair levemente o abdome”); a torcida empolgada dos amigos; o apoio da Família Working Sports; a presença na prova (e no dia a dia da preparação) dos meus amigo-irmãos Gil e Pataro, etc, etc...
Foto tirada na sexta-feira a tarde |
Entretanto, não há como fugir da realidade. Qualquer pessoa presente naquele Parque Taquaral sabe disso. Jamais teria ido tão longe sem a energia e o amor da tia Lalá e a esta maravilhosa mulher dedico o resultado desta Corrida.
Fiquem com Deus!
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Pódio Geral Feminino - Campeã - Gildiane Souza Heusner |
Pataro, 2º lugar na categoria 45/49 (141 km) |
Gil, 2º lugar na categoria 35/39 (136km) |
No Pódio com a Tia Lalá |