Os problemas ocorridos no Desafio 42K, realizado no último dia 10 de
julho, não foram poucos e começaram a pipocar bem cedo, quando os ônibus
prometidos para sair de Aracaju às 4h não apareceram para levar os atletas ao
local de largada em Areia Branca, município localizado ao pé da belíssima Serra
de Itabaiana.
O atraso de 45' na largada e os staffs
levando os ponteiros da prova a tomar a direção errada antes mesmo de deixarem
os paralelepípedos do Município de Areia Branca, definitivamente não eram
sinais de bom augúrio.
Diversas outras coisas neste sentido aconteceram, inclusive nas outras
distâncias disputadas. Enumerá-las, entretanto, não será o foco deste
texto.
Senta que lá vem estória...
Não obstante as poucas semanas de treino específico,
alicerçava minhas esperanças em fazer uma boa prova nos resultados obtidos nas
duas Maratonas disputadas este ano (São Paulo e Porto Alegre), na boa sensação
de corpo descansado com que cheguei à prova sergipana e, principalmente, por
estar de volta ao meu terreno preferido para correr: trilhas e montanhas.
Após a confusa largada, em ritmo moderado de quem ainda tinha muito a enfrentar
pelo caminho, iniciei a descida da pirambeira de 400 metros (já familiar pelo
pequeno treino de reconhecimento feito no dia anterior), sempre avisando aos
mais afoitos para ter cuidado com um arame que estava no meio da estrada antes
da primeira travessia de riacho.
Assim que chegamos à estrada e viramos para a esquerda tudo
virou novidade e aventura.
Na primeira entrada à direita havia um pequeno gancho de estrada em forma de P que passava em alguns fundos de quintal, com um pequeníssimo trecho de trilha que nos traria de volta à estrada principal.
Antes de pegar este caminho, que, salvo engano, se chama Poço das Moças, pude ver (e até cheguei a gritar para alerta-los) alguns atletas que passaram direto.
O grande problema é que após o trecho em forma de P o caminho a tomar era aquele mesmo.
Com a certeza de que nenhum deles havia "pulado" o gancho intencionalmente, senão pela inércia do staff que os deixou passar direto, seguia, agora num ritmo mais forte, torcendo para que eles voltassem para corrigir o erro.
Ainda retornando para o caminho, na companhia de dois corredores que reconhecia como fortes candidatos a pódio geral, pude ver alguns dos atletas que estavam na frente voltando para corrigir o percurso. Inclusive um deles nos gritou: "Errei o caminho e passei direto".
Com alguma dificuldade para saber se estávamos no caminho certo (os staffs não estavam lá), chegamos à entrada do Parque Nacional de Itabaiana. Agora sim, estava me sentindo na prova e em casa.
Nosso grupo foi alcançado por um rapaz de preto que, inconformado com a confusão do começo, ameaçava parar (reclamava que havia se preparado tanto para aquela prova e não aceitava aquilo), conclamando inclusive a que todos fizéssemos o mesmo e voltássemos para a largada para falar com a Organização.
Ponderei que àquela altura não adiantaria nada ir reclamar: "Vamos seguir e nos divertir na trilha. Estamos aqui porque amamos fazer isto, não é?" Seguimos.
Dentro do Parque começamos a nos dividir, eu seguia na frente exatamente com os atletas que me haviam chamado a atenção lá na trilha. Um usava camisa branca de manga longa com uma cruz vermelha pintada no ombro e disse-me ser de Natal (a quem inclusive chamei atenção pela falta de mochila ou cinto de hidratação, item obrigatório para os maratonistas), o outro com a camisa da prova e que chamava atenção por estar correndo com uma garrafinha vermelha na mão.
O rapaz de preto havia entrado no ritmo, mas parou, dizendo que não ia mais.
No posto de hidratação tentei checar com os staffs em que altura da prova estávamos para ver se batia com a marcação do Garmin, mas nem ali nem em nenhum outro posto consegui esta informação. O máximo que recebia como resposta, e já representava um alívio era: "Aqui é o 42". Não era aquilo que perguntava, nem tinha tempo para explicar, o jeito era arrebatar um copinho e seguir em frente.
No primeiro grande morro, onde absolutamente não dava nem para trotar, comecei a ser deixado para trás pelos meus dois "amigos". Andar precisa, apesar de não gostar, fazer parte dos meus treinamentos (rs).
À medida em que os via se afastando, numa olhada para trás, vi que vinha se aproximando um rapaz jovem com a camisa da prova e de boné.
Prossegui na minha escalada e seguindo minha linha em provas de trilha, assim que senti a aproximação de alguém, avisei-o que logo que achasse onde, daria passagem.
Sem nem achar o local ainda, o cara passou agoniado, inclusive esbarrando no meu ombro, pedindo-me sinceras desculpas no mesmo momento e, qual não foi minha surpresa quando constatei que não se tratava do cara do boné e sim do rapaz de preto, que voltara à prova. Pior para mim, pensei eu, o moleque estava em boa forma e, apesar da angústia do para ou prossegue, parecia que agora sabia o que estava fazendo.
Só quando estava chegando ao topo do morro é que fui acompanhado pelo rapaz do boné com a camisa da prova. Ainda assim dei-lhe a passagem e trocamos algumas palavras sobre parecer que agora estávamos no caminho certo, referindo-nos às hesitações do começo da prova.
Em curtíssimo tempo chegamos no plano.
Talvez por ter me visto ser deixado para trás pelos dois caras que estavam seguindo comigo e ser ultrapassado pelo de preto e por ele ter me acompanhado, de forma inocente o rapaz me desejou boa prova e disse: "Vou adiantar".
Não estava morto, longe disso (rs), segui em seus calcanhares e, na primeira oportunidade, ultrapassei-o.
Lembro-me de ter dado uma rápida olhada no relógio, percebido que estava a 4'30/km naquele momento e pensado: Acho que ele não vem não.
Em pouco tempo ele sumiu, mas guardei comigo a sensação de que no caso de surgir uma nova pirambeira pouco à frente ele poderia chegar novamente. Não chegou. Nunca mais o vi.
De repente, ao fim de uma descida insana (mas que dava para correr), perto de uma cachoeira, vi o rapaz de preto reclamando de dor com algumas pessoas que ao passar não pude identificar se eram da sua equipe ou da organização, mas de quem ouvi a seguinte frase: Aí não adianta forçar, é melhor parar.
Confesso algo até vergonhoso (é óbvio que torcia para não ser nada grave, eu mesmo havia dado uma pisada em falso que me arrancara um grito de dor e por algumas frações de segundo tive medo de ter torcido o pé), mas mentalmente pensei: "Um a menos". Justifico o sentimento pouco nobre com o reconhecimento de que ali estava um atleta com alto potencial para vencer a prova.
Por falar em potencial para vencer a prova...
Antes de largar, sentado no chão para aguardar o início, comecei a observar os corredores alinhados sob o pórtico (quase todos estes citados no texto até aqui foram alvo deste momento) e um me chamou mais atenção que os outros.
O cara estava irrequieto, havia aquecido com tiros curtos antes da prova, dava pinta de que sairia à toda na largada (algo bastante desnecessário em provas longas de montanha). Via-o superconfiante, não restava dúvida de que se tratava de alguém bem condicionado fisicamente, mas estaria também mentalmente? Fiquei curioso para saber o desfecho dele na prova. Com meus botões, pensei: “Este vai ser tudo ou nada”.
Largada dos 42k |
Dada a largada, o cara não desapontou a minha observação, voou na frente como se estivéssemos numa prova de 5k no asfalto.
Quando entramos no Parque, ainda sem saber se estávamos no caminho certo,
várias pessoas nos respondiam: - Já passou um corredor e faz um tempão. Era
ele. Sabia o tempo todo que o dianteiro a que todos se referiam bem na frente
era o cara de óculos e camisa azul e branco.
Matei minha curiosidade quando, ao iniciar uma subida avistei-o seguindo bem devagar e parando a cada momento para colocar as mãos na cintura, evidenciando enorme cansaço.
Neste mesmo momento pude ver também que, lá em cima, seguia o atleta de Natal. Não abriu muito - pensei feliz.
Ultrapassei ainda na subida o rapaz de azul e branco e segui em frente, cada vez mais confiante de que faria uma ótima chegada.
Somente muito tempo depois (no km 25) fui alcançar o natalense.
Lembro-me exatamente da quilometragem, pois no momento da passagem ele me perguntou com quantos quilômetros estávamos. Por um instante (olha a competitividade aí gente rs), cogitei a hipótese de responder-lhe que faltava mais do que realmente faltava, para tentar mexer de vez com seu psicológico, mas não o fiz, afinal de contas, no começo da prova havíamos conversado um pouco e ao saber que ele ainda não conhecia Salvador, até para minha casa havia convidado-o.
Lá pelo km 30 sentia-me cada vez mais confortável, torcendo para que a prova tivesse ainda muitos pontos duros para dar tempo de alcançar quem ainda estivesse na frente.
Foi por volta do 32 que avistei e, sem muito me demorar, ultrapassei, o corredor com a garrafa na mão. Ultrapassava-o pensando, esse é dos que gosto (e tento me espelhar), correr uma prova daquela com uma das mãos ocupadas o tempo todo é coisa de casca-grossa dos bons.
Agora começava a encontrar gente do 21 e logo passei por Henrique, que me avisou que Cris estava logo à frente.
Voando ladeira abaixo e mantendo-me no trote ladeira acima, reconheci num dado momento que estava chegando à cidade.
Comecei a subida, sempre de olho para ver se adiante ainda poderia ter alguém para passar. Havia passado todos que sabia estar em minha frente, mas ainda contava com a possibilidade de algum dos atletas que passaram direto no começo da prova não ter retornado para corrigir o caminho.
Na última pirambeira avistei e consegui alcançar dois corredores, mas eram da prova de 21k.
Entrei na cidade fazendo festa com os moradores e os atletas.
No pórtico recebi a notícia de uma classificação difícil de engolir.
Quem são os primeiros? Perguntava. Não os encontrava. Aos poucos, começaram a surgir rumores de que a coisa havia sido bem pior do que simplesmente passar direto naquele ponto inicial. Mesmo sem fazer alarde, na fila para o delicioso macarrão com salsicha ofertado no pós-prova, alguns desconhecidos vinham me confiar suas desconfianças. Dali até a hora do pódio a coisa só aumentou.
Com tristeza, e já tendo certeza da injustiça, apesar de profundamente chateado, recebi sem grosserias o troféu de campeão da categoria.
Na viagem de volta (havia levado 06 pessoas para a prova, 3 no 42, 3 no 21) a
tristeza era grande.
Os dias que se seguiram foram muito mais desgastantes que a prova. Qualquer atleta pode imaginar o que estava sentindo. De forma deliberada ou não, muito mais que a vitória, nos havia sido tirado o momento, imagina a festa que faríamos!
Somente alguns dias depois, após checagem de fatos, evidências e até confissões, a Organização nos devolveu a vitória e o troféu. Isso não tem o poder de trazer o tempo de volta, mas alivia um pouco a sensação de frustração naquela que foi uma das melhores provas da minha vida e que, portanto, da qual sempre deveria me lembrar apenas pelos bons momentos.
Axé!